domingo, 22 de fevereiro de 2009

A velhinha contrabandista.

Todos os dias uma velhinha atravessava a ponte entre dois países, de bicicleta e carregando uma bolsa. E todos os dias era revistada pelos guardas da fronteira, à procura de contrabando. Os guardas tinham certeza que a velhina era contrabandista, mas revistavam a velhinha, revistavam a sua bolsa, e nunca encontravam nada. Nada. Todos os dias a mesma coisa: nada. Até que um dia um dos guardas decidiu seguir a velhina, para flagrá-la vendendo a muamba, ficar sabendo o que ela contrabandeava e, principalmente, como. E seguiu a velhinha até o seu próspero comércio de bicicletas e bolsas.
Como todas as fábulas, esta traz uma lição, só nos cabendo descobrir qual. Significa que quem se concentra no mal aparentemente disfarçado descuida do mal disfarçado de aparente, ou que muita atenção ao detalhe atrapalha a percepção do todo, ou que o hábito de só pensar o óbvio é a pior forma de distração. No Brasil, temos o hábito de procurar e nos indignar com o escândalo menor e deixar passar o escândalo maior, ou o uso do dinheiro público para lucro privado e proveito político, que inclui desde privatizações subsidiadas pelo Estado e a benemerência com bancos falidos até espionagem e contra-espionagem com fins eleitoreiros, sem falar no condominato com as "oligarquias corruptas do Norte e Nordeste", que só se tornaram reprováveis quando se tornaram politicamente inconvenientes.
Isto é banal, é o corriqueiro, é a velhinha passando de bicicleta pela ponte todos os dias.


Luís Fernando Veríssimo

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O que eu pediria ao Diabo

A lenda de Fausto e do seu pacto com o Diabo foi usada por escritores como Goethe e Thomas Mann, e pode ser interpretada de várias maneiras. Fausto simbolizaria a ambição humana pelo poder em confronto com Deus e o destino, ou o espírito humano disposto a desafiar a natureza e a danação eterna pelo conhecimento. De qualquer jeito, é o mito inaugural do homem moderno, o que sacrificou sua alma para ter a Ciência. E é revivido cada vez que alguém precisa decidir, mesmo metaforicamente, se aceita ou não negociar a alma com o Diabo. Ou que alguém apenas imagine como agiria na mesma situação.
Eu, por exemplo, já pensei muito no que pediria ao Diabo em troca da minha alma. Já que não quero nem poder, nem glória, nem, na minha idade, loiras ilimitadas. O que seria? Não, não pediria Sabedoria, nem domínio sobre o Tempo e o Espaço. Pediria, para começar, que a minha mala fosse sempre a primeira a aparecer na esteira, no aeroporto.
— O quê?! — diria o Diabo.
— Quero que a minha mala seja sempre...
— Eu ouvi. Só não acreditei. Você tem certeza que é isso mesmo que quer? Em troca da sua alma?
— Para começar.
— Pense no que está fazendo! É a sua alma, a sua eternidade, que você está me entregando. E em troca quer essa... Essa mesquinharia?!
— Mesquinharia? Pra você. Minha mala nunca — nunca! — é a primeira a aparecer na esteira. Isso é uma aberração estatística. Pelo menos uma vez ela poderia ter aparecido, mas nunca aconteceu. Quero ter a felicidade de ver a minha mala aparecer na esteira do aeroporto na frente das outras. E não uma vez. Todas as vezes!
— Você não quer conhecer os segredos da Matéria e do Universo? Você não quer todos os poderes do mundo?
— Quero um poder só.
— Qual?
— O de poder abrir celofane de CD com a unha.
— Como é?
— Quero o poder de arrancar o celofane que envolve os CDs usando só a unha, sem precisar recorrer a tesourinhas, facas ou dentes, rapidamente e na primeira tentativa.
— Está bem — suspira o Diabo. — O que mais?
— Preciso pensar um pouco. O que mais? Ah, sim. Cartilagem de galinha.
O Diabo não consegue mais nem falar. Me manda prosseguir com um gesto
desanimado.
— Não quero mais ter a surpresa de morder uma cartilagem de galinha, frango ou galeto. Nunca mais. Pelo resto da vida.
O Diabo parece estar a ponto de desistir, de mim e da minha alma. Ele deveria ter previsto isto, quando eu o convenci a aceitar minha assinatura no contrato com Bic vermelha em vez de sangue. Mas o contrato está assinado e tem que ser honrado.
— Que mais? — pergunta o Diabo, de olhos fechados.
— Vaga em estacionamento de shopping. Sem precisar rodar muito. Para sempre.
— Tá bom. Que mais?
— É isso.
O Diabo abre os olhos. Tenta, pela última vez, dar um significado maior ao nosso encontro, ou um valor maior à sua compra.
— Tem certeza? Você não quer que eu lhe revele a Razão e o Objetivo da Existência?
— Tá doido.
— Não quer nada mais em troca da sua alma? Nenhum outro saber que a maioria dos mortais não tem?
— Nenhum.
Mas aí me ocorre outro.
— Ah, sim. Quero saber acertar o timer do videocassete!
E então o Diabo desiste.
Concluindo: não há mais Faustos como antigamente.


Luís Fernando Veríssimo